Segundo episódio de "Cachoeira do Sul: Lendas e Mistérios", série do blog dedicada a trazer relatos misteriosos dos mais de 200 anos desta cidade. O tema de hoje é a Lenda das Sangas da Inês e da Micaela. Uma típica estória de apocalipse, comum no folclore de várias cidades.
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Não é nenhuma novidade dizer-se que cada cidade, cada lugarejo, cada sítio tem suas lendas: umas verdadeiramente interessantes e poéticas outras despidas destes requisitos, revelando crendices mais ou menos bárbaras dos primitivos povoadores desses lugares.
Esta que vamos contar, ou melhor, dizer como no-la contaram, está muito longe de pertencer à classe da lenda de Psiquê e de tantas outras que fazem “o encanto de quem as lê”, ou dos que as ouvem da voz da tradição. Esta, dizemos, é uma lenda essencialmente rústica, que nada mais pode despertar senão o sabor de ouvir o relato das coisas passadas.
O nosso interlocutor – não importa saber-lhe o nome – é naturalmente uma pessoa antiga, amante de coisas antigas. E vem daí o reter ele (ou ela) na memória o que dizem, desde os tempos idos, dessas duas sangas que, lançando-se no Jacuí, limitam, pelos lados Leste e Oeste, a colina em que atualmente se estende a cidade da Cachoeira.
Ouçamos a narração:
“Ali entre a Bica e o rancho onde residiu e morreu o velhinho João Rabequista que, quando não pôde mais pescar saía a tocar uma velha rabeca para ganhar a vida, era o ranchinho da Inês, viúva, segundo dizem, de um português em cuja companhia viveu por dilatado tempo numa constante e bem compreendida harmonia, descontados apenas alguns bate-bocas terminados em pontapés. Mas como tudo neste mundo tem um fim, mais hoje, mais amanhã, o seu velho, homem mais robusto e ativo agenciador da vida, apareceu um belo dia atacado de uma doença esquisita, a modos que enfeitiçado; e não houve remédios caseiros nem benzeduras que impedissem o seu Manoel entrar a definhar a olhos vistos, até que uma noite quatro velinhas bruxuleantes iluminaram-lhe o caminho da posteridade.
Ninguém pôde explicar, senão pelo feitiço, a natureza da moléstia que o matara, ainda os mais entendidos na arte de curar daquele tempo.
De sua junção com a preta Inês não ficou prole; e isto acrescentou sobremodo a desolação da pobre que, só e abandonada, deixou-se tomar de grande acabrunhamento; e então, às horas sombrias carpia suas mágoas, divagando pelas margens da sanga que, a esse tempo, eram revestidas de árvores, não contando algumas clareiras resultantes dos caminhos abertos pelos moradores do sítio e das devastações dos lenhadores.
Um dia, já ao escurecer, Inês sentara-se ao portal de seu velho rancho, e, pensando no passado, recordava-se que antes do seu homem enfermar e bater asas para o outro mundo notara, diversas vezes que, no silêncio da noite, uma coruja muito grande, muito grande, pousava sobre tocos carcomidos em derredor do rancho e soltava pios agourentos e lúgubres.
E assim absorta e passando em revista na mente doentia todos os fatos que pudessem explicar a causa do desandar de sua sorte, ouviu uma voz saída das sombras, que assim dizia:
- Não se apoquente, siá Inês; nesta vida não valem tristezas; o que vale é a gente saber d’onde veio o mal e tratar de dar-lhe remédio. Olhe, o seu homem não era nenhum santo, e foi por isso mesmo que a sirigaita da Micaela deu-lhe as coisas ruins para beber de que veio a enfermar e morrer.
E uma sombra passou-lhe diante dos olhos, sumindo-se na treva.
A pobre criatura tomou-se de tal pavor que nada mais fez que recolher-se para o interior do casebre, passando, porém, a noite em claro, atormentada pela revelação misteriosa da qual resultava uma amarga desilusão e uma funda irritação contra Micaela.
- Mas, quem era essa Micaela?
- Pouco abaixo do lugar que se conhece por Santa Josefa – continuou a narração – existiu antigamente um casinha à margem esquerda da sanga situada ao lado Leste da cidade, que muita gente conheceu habitada por uma cabocla, - dizem que de muita figura, a quem davam o nome de Micaela, cuja vida era cercada de certo mistério e cheia de acidentes. Daí é que vem o nome de Sanga da Micaela, da mesma forma que Inês deu o nome à outra.
Mas como ia dizendo, Inês, extremamente abalada por aquela noite mal passada, resolveu, logo ao amanhecer, ir à Aldeia, onde decerto colheria explicações sobre o que lhe acontecera; e sucedeu que ali chegando não faltou quem não estranhasse a sua cegueira em relação aos fatos ocorridos entre Micaela e seu finado companheiro, os quais ao princípio muito amigos, como todo o povo sabia, tornaram-se depois inimigos por causa de umas coisas que se meteram na cabeça da cabocla que, por sinal, era bem boa bisca.
Desde essa manhã a boca da Inês incendiou-se contra Micaela, da qual, daí em diante pôs todos os podres na rua, os que tinha e mais ainda os que não tinha.
Sabedora disso, a cabocla pagou-se na mesma moeda. Finalmente, sempre que se avistavam era um bate-boca interminável! Certo dia, pegaram-se à unha com tanto encarniçamento que, se não apartassem, estrangular-se-iam uma à outra.
Passaram os tempos; mas como ódio velho não cansa, à medida que o tempo corria mais se azedavam aquelas rivalidades.
Assim passaram os anos até que Inês, muito velhinha e já quase em estado de fantasma, veio uma noite a falecer perto da Bica, praguejando até ao seu último alento contra sua odienta inimiga. Pouco lhe sobreviveu a cabocla, morrendo também em estado de extrema pobreza e abandono.
Toda esta história vem para dizer, meu senhor, que após o desaparecimento dessas duas mulheres, entraram a aparecer as almas delas quase todas as noites nas respectivas sangas, viradas em fantasmas, empenhadas ambas no trabalho de, com as unhas, solaparem as terras das margens – cujas terras as enxurradas andam levando para o rio desde aquele tempo até agora.
Como se vê, a sanga da Inês, que começava da Bica e era muito estreita, está num socavão imenso e já está no ponto de tragar a volta da estrada do Seringa, ao mesmo tempo que vai avançando para o dorso da colina onde, daí a pouco, as casas da cidade se precipitarão ao abismo que a alma da Inês está cavando a seus pés.
Pelo outro lado, a da Micaela vai fazendo a sua tarefa, talvez com maior empenho. Haja vista o que ela tem feito pela altura do Lava-pés. Não há paredões de pedra que bastem a obstar as deslocações das terras corroídas pelas unhas da Bruxa.
Se a engenharia se descuidar, a cidade será igualmente arrastada ao abismo também por esse lado.
Por isso é que o povo diz que quando as sangas se encontrarem, a Cachoeira se acabará.
“Das Crônicas”
https://www.jornaldopovo.net/noticia/A-lenda-das-sangas-de-Cachoeira-agnh
https://historiadecachoeiradosul.blogspot.com/2016/01/a-lenda-das-sangas-da-ines-e-da-micaela.html
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