quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Lendas: A Cachoeira

 Sexto episódio de "Cachoeira do Sul: Lendas e Mistérios", série do blog dedicada a trazer relatos misteriosos dos mais de 200 anos  desta cidade. Fugindo mais uma vez do tema, hoje se traz a lenda da cachoeira. Mesmo não sendo exatamente um conto de terror, serve como complemento para a série de lendas de Cachoeira.


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    Em risonha aldeia de pescadores, à margem de caudaloso rio, que mais além ia formar uma cachoeira, vivia Elias, guapo e esbelto mancebo, de tez bronzeada e cabelos negros. Amava de todo coração o moço pescador a Clarinha, a mais encantadora donzela do lugarejo, filha do velho David, o qual, sem motivo algum, antipatizava solenemente com Elias, a quem hostilizava, assim como à filha, procurando destruir os laços de afeição que ligavam os dois jovens. A oposição que fazia o pai de Clarinha, longe de arrefecer-lhes o amor, tornou-o ainda mais violento.


Fonte: Museu Municipal de Cachoeira do Sul

    David, apesar de ver malogrados seus esforços obstinava-se em não ceder aos rogos da filha. Não encontrava defeito nenhum no rapaz, que era bom, honrado e trabalhador, mas não queria... porque não queria... Era mera questão de capricho.

    Atingindo finalmente Clarinha a maioridade, impôs ao pai a sua vontade e, como se não quisesse ele submeter, partiu a moça para a casa de seus padrinhos que moravam na outra banda do rio. Todas as tardes, lutando na frágil canoa de cedro com as marulhosas da torrente, lá ia o mancebo cantando alegremente ver a querida noiva.

    Uma tarde a aldeia estava em festa. Naquele dia casavam-se Elias e Clarinha. O sol, ao deitar-se preguiçoso no horizonte, dourava com seus últimos raios as águas encrespadas do rio que iam lá adiante formar a cachoeira. Na canoa ornada de flores, que balouçava na praia, saltou Elias. O vento era favorável, não tinha necessidade de remos, deitou-os no fundo da embarcação e, desfraldando a vela, fez-se ao largo. Ia buscar a noiva. O casamento deveria realizar-se, à noite, na capelinha do lugar.

    Quando o jovem pescador afastou-se com a vela solta ao vento, o velho David, em pé sobre a barranca, rugiu entre dentes: - Maldição!... Vais à vela, miserável!... o vento te protege... Quisera que fosses remando, como é teu costume, porque então havias de ir parar, despedaçado, no fundo da cachoeira... e a minha Clarinha, a minha querida filha não seria tua!... O velho não recuara diante do crime para impedir o casamento. Havia feito vários furos nos remos de Elias para que, assim enfraquecidos, se partissem antes dele atingir a margem oposta.

    Pano enfunado, a canoa do noivo abicava à praia fronteira. Clarinha, que ali o esperava, embarcou. Amainara o vento. Colhida a vela, a embarcação, acompanhada de outra em que vinham os padrinhos da donzela, cortou as águas em demanda da aldeia. Chegando o barco ao meio da corrente, para vencê-la o moço pescador começou a remar com todo o vigor de seus braços fortes. Mas, de repente, empalideceu – acabavam de quebrar-se, um após outro, os dois remos – e a canoa descia o rio, a princípio lenta, depois em vertiginosa corrida. Elias tomou nos braços a noiva que desfalecera e, atirando-se à água, tentou nadar para terra. Baldados esforços. A correnteza o arrastava. Várias embarcações, entre as quais a em que vinham os padrinhos de Clarinha, lançaram-se em socorro. Foi tudo em vão...

    O velho David, de pé sobre a ribanceira, imóvel como se fora de pedra, as mãos na cabeça, o olhar desvairado, viu-os abraçados lá ao longe despenharem-se na cachoeira. E murmurava: - Matei-o... mas matei também minha filha...

    Na capelinha da aldeia, lugubremente, começou o sino a dobrar a finados...

    De pé ainda sobre a barranca, louco, o velho, com os olhos desmesuradamente abertos, fitava a neblina que além subia da cachoeira e repetia baixinho, muito baixinho: - Matei-a... matei-a..."

Marques Júnior


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    Texo originalmente publicado na edição do dia 6 de março de 1907 do jornal O Commercio.

Fonte:

https://historiadecachoeiradosul.blogspot.com/2014/12/serie-historias-populares-cachoeira.html#comment-form


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quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Lendas: Sobrado Mal-Assombrado

 Quinto episódio de "Cachoeira do Sul: Lendas e Mistérios", série do blog dedicada a trazer relatos misteriosos dos mais de 200 anos  desta cidade. O tema de hoje trata da lenda mais famosa do município, a casa mal assombrada. 


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    Entre tantos locais supostamente amaldiçoados em Cachoeira, este certamente é o mais memorável. Na Volta da Charqueada, rua quase isolada do restante da cidade, existe um antigo sobrado. Quem o vê, não pensaria que há um século atrás pertenceu à família mais conhecida do município, os Soares de Barcellos. Especificamente, se tratava de uma chácara do Coronel David Soares de Barcellos, o indivíduo que mais vezes ocupou o cargo de prefeito. Ele, juntamente com sua esposa, Alzira Águeda, e seus 24 filhos, muitos dos quais tinham vocação para música. Desta família, iclusive, saiu um reconhecido maestro, Alcindo Barcellos.

    Havia também Maria Alzira, moça com certa aptidão para o piano. Esta faleceu precocemente, em agosto de 1903 aos 18 anos. Tendo falecido tão jovem, e sendo filha de uma importante personalidade da época, sua morte deve ter causado comoção na comunidade local, gerando misteriosas versões a respeito do ocorrido.

    Os diversos relatos existentes desde aquela época, misteriosamente coincidem, mesmo vindo de diferentes pessoas ao longo dos anos. Muito se fala a respeito de vozes e vulto em diferentes locais. No entanto, o fenômeno mais conhecido é o som do piano tocado pela jovem que teve sua vida por lá. Às vezes, rezam as lendas, é possível ouvir a misteriosa melodia do instrumento. E mesmo nos dias atuais, as histórias continuam a perturbar o imaginário da população. 


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    A título de curiosidade, em dezembro de 2012, a equipe do "Visão Paranormal" esteve em Cachoeira do Sul para investigar as assombrações em torno do sobrado mal-assombrado, assim como no Paço Municipal. Eles se denominam com o primeiro programa de caça-fantasmas do Brasil, chegando a aparecer, inclusive, no talk-show "The Noite", transmitido pelo SBT. "Gravamos passos e os medidores do CEM (aparelho detector) acusaram a presença de fantasmas", relata a descrição do vídeo (parte 3 de 4).



Fontes/Sugestões de leitura: 

https://www.revistalinda.com.br/secoes/12/2149

https://www.youtube.com/watch?v=pLbp96PnL_k

https://www.youtube.com/watch?v=K2-wkBBunKc


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quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Lendas: O Surgimento do Arroz

    Quarto episódio de "Cachoeira do Sul: Lendas e Mistérios", série do blog dedicada a trazer relatos misteriosos dos mais de 200 anos  desta cidade. Fugindo um pouco do tema, hoje se traz a lenda do arroz. Apesar de não ser um conto de terror, serve como uma pequena curiosidade dentro do repertório de lendas de Cachoeira.


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    Conta-se que, em 1637, quando os bandeirantes de Raposo Tavares devastaram o atual município de Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, destruindo todos os aldeamentos indígenas que os Jesuítas haviam fundado, conseguiu sobreviver apenas um jovem índio chamado Tuti.

    Desesperado com a perda dos seus pais e de sua morada, Tuti sentava-se à margem do Rio Jacuí e via ali noites e dias nascerem e morrerem.

    O índio chorava. Chorava de fome, chorava de dor, e de saudades.

    E tudo parecia chorar com ele; o sol era pálido, a noite era negra, as florestas haviam se curvado e as águas endoideceram.

    Seis sóis eram passados. Tuti, sentado no mesmo lugar, broqueado de fome e de dor, com a face chicoteada pelo vento e os olhos cravados ao céu, como a pedir clemência, enxergou um vulto.

    Neste momento tudo cessou. As águas continuaram enfurecidas, mas em profundo silêncio, o vento adormecera nas moitas e no céu, como que prevendo felicidade, a lua sorria.

    Sobre as águas, o vulto aproximava-se de mansinho.

    Vulto de mulher, trazia em suas vestes a cor do rio com todos os seus peixes, a cor do céu com suas estrelas, a cor das matas com suas aves.

    Trazia o sol em seus cabelos, e seus olhos luziam como diamantes.

    Deixando rastros luminosos nas águas enfurecidas do rio, aproximava-se mais e mais, até chegar frente ao índio desconsolado.

    Então, falou-lhe:

    – Tenho aqui em minhas mãos a semente que saciará a tua fome e de todos que virão.

    Tome-as.

    Eu as recolhi de tuas próprias lágrimas caídas no rio.

    Dizendo isto, o vulto luminoso deixou escorrer de suas mãos uns poucos pingos dourados, os quais o índio, com gestos selvagens, colheu.

    O vulto sumiu. Um violento temporal desabou.

    O índio de tão fraco desmaiara, apedrejado pelo granizo caído do céu.

    E as sementes foram levadas pelas águas.

    Após noites e dias de chuva, quando o sol, radiante, voltou, Tuti encontrou uns cachos, já dourados, com as sementes.

    Colheu-os, preparou-os e saboreou.

    Era uma plantinha frágil, mas que lhe dera muita vitalidade.

    Hoje chamamos esta plantinha-ternura de ARROZ.

    E para maior mistério, à meia-noite, às margens do Rio Jacuí, há um profundo silêncio, embora as águas desçam endoidecidas.

    Isto, talvez, em homenagem à Deusa das Águas, que saciou a fome de Tuti e nos semeou o arroz.

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    O texto acima foi originalmente escrito por Elisabeth da Silveira Lopes e publicado pelo Jornal do Povo na edição de 10 e 11 de setembro de 2005.

Fonte: 

Jornal do Povo – 10 e 11/9/2005 – página 13 / http://www.guiacachoeira.com.br/?url=151


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